
Não é de hoje que a relação Porto Cidade é delicada. Portos brasileiros vivem em evidente conflito com as questões ambientais, graças às instalações localizadas em áreas estuarinas ou abrigadas, onde a existência de ecossistemas delicados e legalmente protegidos são uma constante. Além disso, não raro, comunidades tradicionais convivem num cenário de derramamentos, dragagens mal executadas, lançamento de resíduos sólidos, surgimento de espécies invasoras via água de lastro, desaparecimento de estoques pesqueiros por poluição, remoção de habitações ribeirinhas para crescimento de terminais, entre outros embates.
Neste cenário, o rolo compressor desenvolvimentista atropelava apelos de quem ousava se colocar à frente do trator. O Poder Público detinha o comando e controlava o licenciamento, devidamente azeitado pela iniciativa privada. Audiências públicas, por mais participativas e combativas que fossem, só serviam para cumprir uma etapa burocrática do procedimento, que sempre terminava na licença para destruir.
A ampliação do Porto de São Sebastião passou por uma experiência dessa natureza, graças a um projeto de ampliação que visava a eliminação absoluta da Planície Costeira do Araçá, o último remanescente ecossistêmico fornecedor de serviços ambientais marinhos da região. A teimosia de alguns gestores da Companhia Docas de instalar um monstrengo sem pé nem cabeça, naufragou na Justiça junto de um licenciamento mambembe, após uma disputa que foi parar nos Tribunais Superiores. Dinheiro que iria para poucos, acabou sendo jogado pela janela.
Anos depois, percebendo que o diálogo é a única alternativa para um crescimento digno, as partes voltaram a mesa para discutir uma ameaça comum: a desestatização do Porto, projeto sob a batuta do ex-presidente da República e do atual governador, na época (como agora) um animado privatizador de estatais que ocupava um dos ministérios. Como todos os portos do Brasil tem competência de exploração pela União (Constituição Federal de 1988, art. 21, XII, “f”), privatizar não era possível. Restou tentar desestatizar, ou seja, retirar a Autoridade Portuária do ente público e entregar o porto a um dono boçal e soberano.
Isso reduziria sobremaneira um dos grandes trunfos do porto público, que é sua sinergia com a economia local e regional, algo que ocorre em todos os locais do mundo onde existe porto público, e desaparece onde a autoridade fica nas mãos do único proprietário, livre para vender só o que quiser, emporcalhar o porto e trabalhar com seus próprios escravos, longe dos olhos de quem poderia puni-lo. Outro exemplo é a igualdade no tratamento entre os diversos operadores portuários privados, que só ocorre quando mediada pela Autoridade Pública, que tem funções natas de estado, fiscalizatórias e regulatórias, pré-requisitos fundamentais para melhor governança do empreendimento.
Inconformada, aquela mesa de diálogo produziu documentos, insurgiu-se ante a editais, angariou adeptos adormecidos, opôs resistência dos poucos valorosos contra os muitos ardilosos. Luta desigual, mas ao final vencedora.
Felizmente aquele governo federal e seus ideais sucumbiram junto com seus pilares de areia, e a comunidade portuária local respirou aliviada. Mais do que isso, sedimentou-se aos poucos uma maturidade inédita no trato entre os múltiplos setores da relação porto cidade, o que tornou possível a criação do COMPORTO, um comitê suprapartidário, plural, que aglutinou de autoridades militares e portuárias, a trabalhadores, sindicatos, entidades e até a academia.
Na proa, um destino: um porto que pudesse se desenvolver de forma sustentável, inteligente para mesclar o público ao privado, em harmonia com o trabalhador portuário avulso, operadores, agências e todos os demais atores sob a batuta da Autoridade Portuária.
Para crescer de forma decente, o Governo Federal propôs o arrendamento do porto. As conversas evoluíram em conjunto, o diálogo ajustou pontos, aparou arestas, e um modelo de edital parecia ser de consenso, harmonizando um cais híbrido com berço público garantido e um píer construído pelo arrendatário. A bonança parecia ter chegado para ficar até que, de repente, um vento estranho entrou pelas veredas: veio a notícia de que o Governo Federal mudou de ideia e um único arrendatário monopolizaria todo o cais.
O tal vento arrepiou as almas da comunidade portuária, o medo invadiu lares de trabalhadores, a insegurança tomou conta dos operadores, e um déjà-vu de maldades voltou à beira do cais. Era preciso, uma vez mais, reagir.
Neste cenário, que imprime um status de “monopólio privado” para o porto de São Sebastião em detrimento do que havia sido um consenso, foi requerida e concedida uma audiência na Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados, para deixar clara a posição do COMPORTO e dos portuários.
Ali não se discutiu modelo de autorização, tipo de carga (se viva ou não), formato de ampliação, ou menos ainda, o retrocesso de um licenciamento falido que foi sepultado há anos junto de seu projeto e gestores. Apenas havia a oposição à uma nova proposta de arrendamento que concede um lugar múltiplo para um dono singular. Esse é o ponto atual em que estamos.
A discussão sobre o tipo de carga que o Porto pode trabalhar ou o tamanho do píer que se poderá construir, é assunto para outros debates sob a ótica do respeito às opiniões diversas. Por enquanto, importa lembrar que caso o “monopólio privado” seja levado aos leilões de arrendamento do Porto de São Sebastião, não haverá espaço para trabalho, renda, oportunidades ou, o tão aguardado diálogo.
Nada disso sobrevive a um arrendamento que desemprega ou torna reféns cidade e porto.
Por esta razão, o tempo é de resistência e união.
Desvirtuar esse debate para ressuscitar defuntos só atrapalha. Faz crer que nem todos estão cientes do tamanho da tribuzana, do que pode vir pela proa da embarcação. A história de idas e vindas, de guerreiros vencidos e vencedores, deve ensinar alguma coisa ao porto e à cidade.
Ou acordamos para enfrentar esse modelo ou ficaremos todos encalhados vendo a boiada passar.
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