Há 20 anos, o Protocolo Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de mulheres e crianças – internacionalmente conhecido como Protocolo de Palermo –, foi ratificado pelo Brasil. Desde então, o país tem desenvolvido importantes ações interinstitucionais com o objetivo de oferecer assistência às vítimas, penalizar os autores e prevenir a sociedade sobre esse crime. No entanto, ainda é comum que a população reaja com incredulidade diante da informação de que, em pleno século XXI, pessoas continuem sendo traficadas para promover o enriquecimento de outros indivíduos.
Estudos da Organização Mundial do Trabalho (OMT) apontam que o tráfico humano movimenta cerca de 32 bilhões de dólares por ano. Dentre as vítimas, 79% são exploradas sexualmente, sendo as demais destinadas ao comércio de órgãos e à exploração em condições análogas à escravidão em latifúndios, na pecuária, em oficinas de costura e na construção civil.
Os grupos envolvidos no recrutamento de mulheres geralmente buscam vítimas em situação de maior vulnerabilidade, residentes em áreas periféricas com pouco acesso à informação. Os aliciadores — homens e mulheres de boa aparência, com poder aquisitivo elevado e nível educacional avançado — aproximam-se das vítimas muitas vezes por meio de parentes e amigos, oferecendo promessas de melhores condições de vida, trabalho no exterior, prostituição lucrativa ou até casamento com estrangeiros.
Muitas pessoas são capturadas por redes de tráfico nacional e internacional a partir dessas propostas enganosas. Algumas têm ciência dos riscos ou desconfiam das promessas; outras, por sua vez, sabem parcialmente o que as espera. Ainda assim, tais situações configuram, de forma inequívoca, o crime de tráfico de pessoas.
Após receberem bolsas para um curso de inglês no exterior, três brasileiras tornaram-se vítimas de um lucrativo mercado de tráfico humano que, segundo a ONU, afeta 2,5 milhões de pessoas anualmente. “Venderam-me um sonho que virou pesadelo”, afirma uma das brasileiras, ainda em recuperação de uma sequência de abusos vividos no submundo da capital inglesa. Seus passaportes, documentos e dinheiro foram confiscados na chegada. O contato com parentes era proibido, os passos eram monitorados por celular e câmeras escondidas, e ameaças de divulgação de vídeos íntimos eram constantes. As mulheres eram forçadas a atender entre 15 e 20 clientes por dia.
A internet revolucionou a forma de comunicação, negócios e relacionamentos, mas também se tornou uma ferramenta poderosa nas mãos de traficantes. Desde o aliciamento e controle das vítimas até a “divulgação” de serviços sexuais, o ambiente digital é hoje um canal estratégico dessas organizações criminosas.
Nesse contexto, os brasileiros Phelipe de Moura Ferreira e Luckas Viana dos Santos aceitaram uma proposta de trabalho recebida via Telegram e foram mantidos reféns por três meses em Mianmar, forçados a atuar em uma “fábrica de golpes cibernéticos”. Monitorados e punidos com agressões físicas, eram obrigados a se passar por modelos chinesas pedindo dinheiro a brasileiros. Com ajuda do Ministério das Relações Exteriores, do Itamaraty e da ONG Exodus Road, conseguiram fugir e retornar ao Brasil.
A tecnologia, no entanto, também ajudou o médico João Mallmann, de 28 anos, a desvendar sua verdadeira origem. Ao tentar obter a cidadania portuguesa, descobriu que seu registro de nascimento era falso e que fora vítima de uma adoção ilegal. Com vídeos no TikTok, mobilizou seguidores e recebeu ajuda para encontrar seus pais biológicos. Sua mãe, em situação extrema, fora convencida por profissionais de saúde a entregar o filho a um casal rico, sem qualquer processo legal. Hoje, João é ativista contra a adoção ilegal e denuncia redes criminosas que exploram a vulnerabilidade de mulheres em situação de pobreza.
Outro caso emblemático envolveu quatro jovens catarinenses, de 18 a 21 anos, contratadas por uma agência de modelos em São Paulo para trabalhar em um cruzeiro. Ao embarcarem, foram privadas de comunicação e submetidas a vigilância constante. Graças ao contato de uma das vítimas com a família, a Polícia Federal interceptou o navio em Angra dos Reis e prendeu o suspeito.
Em 2022, foi registrado o caso mais duradouro de exploração contemporânea no Brasil desde a criação da estrutura nacional de fiscalização do trabalho, em 1995. Uma senhora negra foi resgatada após passar 72 anos em situação de trabalho doméstico análogo à escravidão, servindo a três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro. Ainda criança, fora entregue pela mãe a uma família com melhores condições financeiras, sob a promessa de estudo e cuidado.
Nestes 20 anos desde a assinatura do Protocolo de Palermo, algumas constatações se consolidaram no Brasil: a principal finalidade do tráfico interno é a exploração laboral; a vulnerabilidade socioeconômica é fator determinante para o aliciamento de vítimas; e a internet transformou radicalmente o modus operandi desse crime.
Por isso, mais do que necessário, é imperativo debater o tráfico de pessoas, especialmente frente à vulnerabilidade do Litoral Norte, região atravessada por rotas conhecidas como o Porto de São Sebastião e a Rodovia Presidente Dutra. Uma política pública de enfrentamento eficaz deve articular diferentes setores, promovendo uma abordagem multidimensional e intersetorial, com participação das instituições públicas e movimentos sociais. As prefeituras das quatro cidades do Litoral Norte devem trabalhar de forma integrada na formulação de políticas públicas, capacitação de profissionais e na atuação da rede socioassistencial para prevenir e proteger as vítimas, além de responsabilizar os autores.
A Prefeitura de São Sebastião publicou, em 11 de outubro de 2024, o decreto que instituiu o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP), em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública. O Núcleo seria vinculado à Secretaria Nacional de Justiça, via Acordo de Cooperação Técnica com o ministério, então sob gestão do ministro Ricardo Lewandowski. Contudo, a proposta nunca foi efetivamente implementada, deixando uma lacuna importante desde a extinção do Comitê Interinstitucional de Combate ao Tráfico de Pessoas do Governo do Estado de São Paulo.
O desaparecimento de jovens e mulheres em todo o país continua a causar dor e incerteza para inúmeras famílias. O NETP tem por missão articular, estruturar e consolidar uma rede de referência para atendimento das vítimas, a partir dos serviços já existentes.
Diante da gravidade e da complexidade do tráfico de pessoas, é urgente que os entes federativos – União, estados e municípios – assumam sua responsabilidade constitucional, destinando recursos e pessoal qualificado para implementar políticas públicas eficazes de prevenção, repressão e acolhimento. É necessário, também, que a sociedade civil, as universidades, o sistema de justiça, os meios de comunicação e o setor privado se engajem de forma ativa e colaborativa nesse enfrentamento. Somente com ações coordenadas, intersetoriais e contínuas será possível romper o ciclo de aliciamento, exploração e impunidade que ainda persiste em pleno século XXI. O tempo da omissão acabou. É hora de agir.
Camila Aquino dos Santos
Forçadas a fazer ’15 a 20 programas por dia’, brasileiras são resgatadas de rede de exploração em Londres
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58364082
Jovens escravizados em Mianmar eram obrigados a dar golpes pela internet em brasileiros
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/02/18/jovens-escravizados-em-mianmar-eram-obrigados-a-atrair-vitimas-no-brasil-em-golpe-na-internet-me-passava-por-modelo-mas-brasileiro-era-dificil-de-enganar.ghtml
‘Fui adotado ilegalmente e achei família biológica com a ajuda do TikTok’
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/12/21/descobri-que-fui-adotado-ilegalmente-e-encontrei-meus-pais-com-o-tiktok.htm?cmpid=copiaecola
Quatro jovens são resgatadas de cruzeiro pela PF no RJ suspeitas de serem vítimas de exploração sexual https://jovempan.com.br/noticias/brasil/quatro-jovens-sao-resgatadas-de-cruzeiro-pela-pf-no-rj-suspeitas-de-serem-vitimas-de-exploracao-sexual.html
Mulher é resgatada após 72 anos de trabalho escravo doméstico no Rio
https://reporterbrasil.org.br/2022/05/mulher-e-resgatada-apos-72-anos-de-trabalho-escravo-domestico-no-rio/
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